Pensei seriamente em devolver a Valentina. “Ué, mas você não estava tão apaixonada pela gata outro dia?”, vão me perguntar. Foi repentino, eu sei. E explico. Vamos aos fatos.
A decisão de adotar a bichana foi tomada num impulso. Fiquei tocada pela triste história da gatinha e pelos seus lindos olhos verdes. Fazia tempo que eu queria um bicho de estimação. Minha primeira escolha seria um cachorro, animal que me é bem mais familiar. Mas eu passo o dia todo fora, seria maldade. Aí me disseram que gatos são menos carentes, ficam sozinhos em casa numa boa. É, ficam sim. A casa é que não fica nada bem.
Nos primeiros dias tudo ia às mil maravilhas. A Valentina dormia quase o tempo todo, aonde eu ia, ela vinha atrás – uma gracinha! Mas só porque ela ainda não estava ambientada no meu apê, descobri depois. Foi só começar a se sentir em casa pra botar as unhas de fora. Literalmente.
Na quinta-feira, cheguei em casa e encontrei um pano de prato destruído no chão da cozinha. “Ah, tudo bem. Eu estava precisando de panos de prato novos, mesmo. Só que não vou poder mais pendurá-los aqui”, pensei. Mas no dia seguinte, a surpresa foi mais desagradável. Minha tieflera querida estava destroçada. Isso me deixou bem mais chateada que o pano de prato. Tinha sido presente da minha avó, logo que me mudei. Na época tinha só duas folhinhas, um bebê planta. Depois de quase dois anos, havia se transformado num arbusto vistoso no canto da minha sala. E agora estava reduzida a um caule todo arranhado e... duas folhas.
Chegou o sábado, primeiro dia que eu ia passar inteirinho com a Valentina. Notei que os brinquedos que eu comprara – bola e ratinho de pano – não prendiam sua atenção por muito tempo. Ela estava mais interessada em outras atividades, como desfiar o tapete e derrubar os CDs da estante. Parti para as tarefas domésticas de fim-de-semana. Botei a roupa na máquina e fui passar um pano no chão da cozinha (que cheirava a zoológico). A Valentina largou o tapete e os CDs pra correr atrás do pano. Botei a gata na sala e fechei a porta da cozinha para terminar o serviço.
Chão limpo, cozinha cheirosa, voltei pra sala e dei de cara com a pestinha empenhada em destruir o sofá que eu ainda nem terminei de pagar. Respirei fundo e fui tentar distraí-la com os desprezados brinquedos. Deu certo por um tempo. Pendurei a roupa lavada e saí pra comprar uma coca-cola.
Juro que não demorei nem cinco minutos, mas quando voltei um dos lençóis do varal estava completamente inutilizado. Sorte que ela escolheu o lençol (que já estava velho e com alguns buracos de cigarro) em vez de algum vestido de maior valor sentimental. O varal aqui de casa é de parede – a área de serviço é estreita e o aquecedor a gás impede a instalação de um daqueles de teto – e as roupas ficam bem ao alcance das patinhas destruidoras.
Desesperada e sem saber como conter a sanha demolidora da Valentina, resolvi levá-la a um passeio. Aproveitando que a minha avó estava viajando, rumei pra casa dela. Tá, eu sei que gato não é um bicho chegado a passeios. Mas a casa da minha avó fica a cinco minutos de carro do meu apartamento. Tem um terreno grande, gramado, muitos passarinhos e borboletas pra Valentina correr atrás. Achei que ela ia gostar. Odiou. Se entocou na antiga casinha de boneca, que hoje é entupida de entulhos de todo tipo. “Deixa ela aí”, pensei, “uma hora ela sai”. Me enganei de novo. Escureceu. Tentei atraí-la com a voz mais doce que consegui extrair das minhas cordas vocais. Ela não saiu. Ração, biscoito, carne. Nada feito. Achei uma lanterna e arranquei-a a força. Voltamos pra casa.
E a destruição continuava. No intervalo da novela, fui buscar um copo d’água e peguei a gata no pulo (literalmente, de novo) quando tentava derrubar da parede meu espelho com moldura de bambu. Tudo bem, os sete anos de azar iam ser pra ela. Mas quem ia ficar sem o espelho era eu. E, junto com o espelho, ia pro chão uma lanterna indiana linda, dessas que você põe uma vela dentro, pela qual eu paguei quase duzentas pratas. Consegui evitar o desastre. Mas foi por pouco.
Saldo (negativo) da primeira semana da Valentina aqui em casa:
- um pano de prato e um lençol transformados em farrapos;
- dois tapetes de sisal meio descabelados e com as bordas viradas para cima;
- um sofá um pouco arranhado;
- minha calça jeans preferida com vários fios puxados;
- uma tieflera destroçada e muitas plantas com folhas a menos;
- algumas caixas de CD quebradas;
- duas almofadas desfiadas,
- inúmeros arranhões, incluindo um perto da unha do mindinho direito que arde só de chegar perto da água.
Foi aí que eu me toquei que talvez tivesse que escolher. Primeira opção: moraríamos eu e Valentina num apartamento sem sofá, sem tapetes, sem plantas, sem discos, livros e DVDs, sem nada pendurado nas paredes e sem nunca mais lavar as roupas. Segunda opção: moraria eu com todas essas coisas e sem a Valentina. Liguei pro Rapha na mesma hora. Ele aceitou a gata de volta, mas como estava no trabalho e ficaria lá até de madrugada, pediu que esperasse até domingo para devolvê-la. “Tudo bem”, pensei. “Amanhã cedo desovo a gata na casa dele, antes que ele mude de idéia”.
Parece que a Valentina adivinhou o que estava pra acontecer, porque no domingo ela se comportou como uma lady. Perdi a coragem de abandoná-la, resolvi dar mais uma chance pra ela. Liguei pro Rapha pra comunicar minha nova decisão. E não é que ele não atendeu o celular nem o telefone de casa?